quinta-feira, setembro 09, 2010

A MENINA DO COTOVELO ROXO - VIVA SEM DROGAS


A menina na janela acalentava sonhos. Seu mundo era pequeno e sofrido. Mas seus sonhos eram grandes. E eram de um futuro feliz.

Menina, ainda na primeira infância, sofria com o alcoolismo em família. Filha de migrantes nordestinos, a “raspa do tacho” não foi planejada. Sua mãe, na época com 30 e poucos anos, achava-se velha para ter outro filho e pensou em alguma maneira de interromper a gravidez. Sob conselhos da avó e força do destino, a mãe desistiu do intento. Menina valente! lutou pela vida.

Tarde da noite, lá estava ela: acotovelada no batente da janela da sala, aguardando ansiosamente o abrir do portão da frente da casa de aluguel. Mais uma de muitas noites já passadas ali, naquela mesma janela e naquela mesma hora. Roia suas escassas unhas numa ansiedade crescente.

Da janela ao portão, um longo corredor se estendia. O muro de um azul petróleo tornava tudo mais escuro, apesar da tinta descascada sobre outras tintas igualmente descascadas.
Mas o olhar da menina era um só: o portão da rua.

O cachorro vira lata e cinzento às vezes latia querendo sair para sua vadiagem noturna. Mas sempre voltava. Ou quase sempre (algumas vezes ir à carrocinha à sua procura era normal). A menina achava-o parecido com o cachorro feio do desenho “A Dama e o Vagabundo”. E ele era feio mesmo, mas também era esperto, carismático e carinhoso. E fiel!

Dia seguinte era dia de escola. Suas notas estavam fracas, apesar de estudiosa. Estudava em escola de freiras. Estudava entre ricos. Mas ela era diferente, era pobre. Hora do recreio ela lanchava sozinha, sentada em um dos degraus do pátio. Os irmãos mais velhos, às duras penas, dividindo aqui e ali, quiseram que ela tivesse melhor educação, pelo menos até ela completar o antigo primário.

Apesar do sono, ela não poderia pensar em dormir. Tinha responsabilidades. A menina sentia-se responsável pela paz e harmonia daquela casa. Deus a havia escolhido como anjo guardião. Ela sabia disso. Ela estudava religião, adorava canto religioso e gostava de rezar na capela da escola.
Era menina ainda, mas já tinha fé.

E, sem reclamar, continuava acotovelada na janela enquanto a mãe assistia à televisão num volume quase inaudível, já cansada das tarefas do dia. A mãe lhe pedia para ir dormir. Mas a menina não podia. Temia pela mãe. Temia pela família. Temia por ela mesma.

Na mesa da cozinha, repousavam um prato com garfo e faca num pedaço de toalha dobrada em dois. No fogão, a comida já requentada agora esfriava. O relógio de parede marcava 23h30. Logo seria o outro dia. A menina estava sempre perto de sua mãe. A menina tinha o colo da mãe. A mãe tinha a proteção da menina.

O portão da rua faz barulho. A menina percebe um vulto entrando junto com o cachorro. Percebe também que ele demora a fechar o trinco. Talvez esteja escuro demais (ela torce para que seja por isso!). Ele deixa cair alguma coisa no chão. Trôpego, caminha trançando as pernas.

De repente, ele para. E faz xixi na parede do corredor. Ele nem percebe, mas deixou a braguilha aberta e urinou na calça.

A menina percebe então que, outra vez, seu pai está bêbado. Outra vez ele trouxe pão e leite muito tarde da noite. Ela pede com expressiva aflição à mãe para que ela não brigue.

A menina, cujas marcas roxas no cotovelo confirmavam sua rotina, abre a porta da sala e vai ao encontro do pai.

Segura-o pelos braços e enquanto o traz para dentro de casa, pede a Deus que, naquela noite, não se quebre mais um prato de comida.

FIM


Nota:
Fiz esse texto como forma de alertar para os riscos, já conhecidos, do alcoolismo. E os efeitos desse vício na vida em família. Espero tenha sido útil e reflexivo.

((•)) Ouça este post

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